Peroxissomos

Rafael Pegoraro

Introdução
Os peroxissomos são organelas citoplasmáticas esféricas envolvidas por uma membrana de camada bilipídica presentes em todas as células eucarióticas (Figura 1). A localização dessas organelas na região intracelular está relacionada com a função desempenhada por elas, já que o conteúdo dessas vesículas, apesar de guardar algumas semelhanças, é variável de acordo com a espécie e o tipo celular.
Assim, os peroxissomos encontram-se distribuídos aleatoriamente pelo citoplasma celular, ou ainda, em regiões específicas onde possam exercer seu papel, como próximos a mitocôndrias e cloroplastos.
Eles possuem papel fundamental no metabolismo de espécies reativas de oxigênio (ROS), de lipídios e de substâncias tóxicas como, por exemplo, o etanol.
Dessa forma, distúrbios que aflijam o desempenho dessas organelas vêm sendo relacionados a doenças metabólicas importantes, já que essas patologias decorrem de defeitos em processos fundamentais à manutenção da vida celular.

Peroxissomo

Figura 1 – Representação esquemática de um peroxissomo, indicando seu conteúdo e sua membrana. (Créditos: Bruna Afetian Sollitto)

Conteúdo Peroxissomal

Os peroxissomos contêm no mínimo 50 enzimas diferentes que estão envolvidas nas mais diversas vias metabólicas de diferentes tipos celulares. A expressão de um determinado conteúdo enzimático pode variar entre os tipos celulares de um mesmo organismo ou ainda entre as espécies estudadas. No entanto, todas elas pertencem a duas classes enzimáticas que são comuns a qualquer peroxissomo: as oxidases e as catalases.
As oxidases são responsáveis pela catálise da reação de oxidação de substratos, envolvendo o oxigênio molecular (O₂) como o aceptor final de elétrons, com consequente produção de peróxido de hidrogênio (H₂O₂). Essas enzimas são essências para processos importantes que ocorrem no nosso corpo como, por exemplo, o metabolismo de lipídios. Além disso, elas participam do ciclo do ácido glioxílico e do processo de foto-respiração nos vegetais.
Justamente pela presença das oxidases é que o segundo tipo enzimático é necessário. Isso porque o peróxido de hidrogênio é tóxico às células. Assim, as catalases têm por função catalisar a reação de decomposição dessa espécie química tóxica numa outra que não seja prejudicial à célula. No caso, a água. Seguindo a reação: 2 H₂O₂ → 2 H₂O + O₂.

Aspectos Funcionais

Nesse sentido, os principais aspectos funcionais dessas organelas estão relacionados com:

  • Degradação de peróxido de hidrogênio (descrito acima)
  • Desintoxicação
    Os peroxissomos tem papel importante na desintoxicação do organismo, essencialmente em órgãos como o fígado e os rins. O conteúdo enzimático dessas organelas auxiliam na metabolização de substâncias estranhas às células como o álcool (etanol), os remédios e etc.
    No caso da bebida alcoólica, esse processo se dá por meio da peroxidação do etanol em acetaldeído, uma espécie química menos tóxica às células, por ação da catalase.
  • Metabolismo de lipídios
    • Metabolismo de ácidos graxos
      Os peroxissomos participam do processo de degradação dos ácidos graxos (β-oxidação). Nesse processo, há a produção de um substrato energético conhecido como acetil-CoA que poderá então ser transferido às mitocôndrias para participação do ciclo de Krebs, com o objetivo de gerar energia (ATP).
    • Síntese de colesterol
      Os peroxissomos possuem enzimas que são responsáveis pela síntese de colesterol, assim como o retículo endoplasmático (RE).
      A biossíntese de colesterol é importante para a produção de hormônios esteroidais que são essenciais para a manutenção de nossos processos biológicos (testosterona e progesterona são exemplos); e para síntese dos sais biliares, que são derivados dessa molécula.
  • Ciclo do ácido glioxílico
    As moléculas de acetil-CoA produzidas na metabolização dos ácidos graxos que não são utilizadas pelas mitocôndrias para a produção de ATP podem seguir, em vegetais e algumas bactérias, outra via que é conhecida como ciclo do oxilato.
    Nessa via metabólica, há a utilização do Acetil-CoA para a produção de glicose e outros intermediários do ciclo de Krebs. Dessa forma, há a transformação de ácidos graxos em glicose.
    Células de sementes oleaginosas, como amendoim e girassol utilizam essa via durante o processo de germinação para que possam utilizar a energia armazenada sob a forma de ácidos graxos.
    Nesses vegetais, bem como em outros organismos que possuem essa via metabólica, os peroxissomos são chamados de glioxissomos, por possuírem enzimas tanto da via metabólica da β-oxidação como do ciclo do glioxilato.
  • Foto-respiração
    Em certos tipos de plantas, as enzimas oxidases e catalases dos peroxissomos auxiliam no processo de foto-respiração, pelo qual os vegetais consomem oxigênio e liberam gás carbônico na presença de luz. É um processo complexo que ocorre por meio da cooperação dos peroxissomos, mitocôndrias e cloroplastos (Figura 2).

Figura 2 – Associação morfológica entre cloroplastos, peroxissomos e mitocôndrias em células de certos tipos de vegetais. Participação conjunta no processo de Foto-respiração

Apesar das semelhanças estruturais com os lisossomos, os peroxissomos apresentam um mecanismo de formação diferenciado, ainda alvo de muitos estudos pela comunidade científica.
Enquanto os lisossomos se originam do Complexo de Golgi, os peroxissomos apresentam um procedimento de auto-replicação que, no entanto, se difere daquele realizado nas mitocôndrias, pois eles não apresentam a molécula de DNA própria.
Desse modo, as enzimas da matriz peroxissomal são provenientes, sobretudo, de ribossomos livres no citoplasma que codificam proteínas com sinais de endereçamento que indicam para a molécula que ela deve seguir caminho até essas organelas. Esses sinais de endereçamento são sequências específicas de aminoácidos conhecidas como PTS (peroxissomal targetting signal) e podem se localizar na extremidade C-terminal (PTS1) ou N-terminal (PTS2) das proteínas.
As proteínas são então importadas para o interior da organela com o auxílio de receptores PTS1 e PTS2 através de canais presentes na membrana dos peroxissomos que os reconhecem (Figura 3).
Essas organelas também necessitam de fosfolipídios para manutenção de sua membrana e que são geralmente sintetizados pelo RE. Por isso, os cientistas acreditam, hoje em dia, que o processo de síntese de novos peroxissomos se dá por meio da auto-replicação em conjunto com o RE. Nesse sentido, o processo de importação de proteínas para a matriz da organela bem como o recrutamento de fosfolipídios para a membrana, resulta no aumento de tamanho até que ela se divida e origine dois novos peroxissomos.

Figura 3 – Via de importação de proteínas para a matriz peroxissomal, por meio de receptores PTS 1, PTS 2 e canais presentes na membrana da organela. Ao conjunto dessas proteínas que auxiliam no processo de importação, dá-se o nome de peroxinas.

Doenças decorrentes de disfunção dos peroxissomos

O conhecimento das funções e do processo molecular de montagem dos peroxissomos é importante para entender as disfunções que desencadeiam patologias relacionadas a essas organelas.
As duas principais doenças decorrentes de distúrbios peroxissomais são a Síndrome de Zellweger e a Adrenoleucodistrofia (ADL).
A Síndrome de Zellweger é uma doença de caráter genético autossômico recessivo que afeta os genes que codificam as proteínas responsáveis pela síntese e montagem dos peroxissomos que, nesse caso, se apresentam vazios, sem as enzimas da matriz peroxissomal. Trata-se de uma doença que afeta principalmente o cérebro, fígado, rins e que resulta em transtornos no metabolismo de lipídeos, desencadeando o acúmulo de lipídeos de cadeia longa, e defeitos na síntese de sais biliares.
Os peroxissomos são fundamentais para o desenvolvimento do sistema nervoso, pois seu papel na metabolização de lipídeos de cadeia longa influência controla a síntese da bainha de mielina, substância lipídica que reveste os axônios neuronais e facilitam a propagação do estímulo elétrico. Nesse sentido, a Síndrome de Zellweger promove sintomas como o aumento do tamanho do fígado e anormalidades neurológicas ligadas a desmielinização dos axônios (retardo mental e convulsões) (Figura 4).
Da mesma maneira, a adrenoleucodistrofia está relacionada com o comprometimento do metabolismo de lipídeos resultanto em um acúmulo de ácidos graxos de cadeia altamente longa (AGCML) que afetam principalmente o cérebro e a glândula adrenal. A principal diferença entre essa doença em relação à Síndrome de Zellweger é que nesse caso há a deficiência em apenas uma das enzimas dos peroxissomos, a ligase acil-CoA gordurosa, que é responsável pela importação de ácidos graxos para a matriz peroxissomal.
Essa doença tem caráter genético ligado ao cromossomo X, sendo mais comum, portanto, em homens. Ela pode se manifestar ainda nos primeiros meses de vida, ou até mesmo no início da adolescência, causando deterioração neurológica, disfunção adrenal, perda da memória, entre outros sintomas.

Figura 4 – Corte axial do encéfalo obtido por Ressonância Magnética Nuclear. Em A, está representado o encéfalo de um paciente com a doença, com focos de desmielinização. Em B,o mesmo paciente foi submetido a um tratamento experimental, mostrando redução da intensidade do sinal (remielinização).

Curiosidades

A ADL já serviu de inspiração para um filme estadunidense de 1992 (Lorenzo’s Oil – O óleo de Lorenzo), baseado em fatos reais e que conta a história dos pais de Lorenzo, um menino que a partir dos 6 anos de idade começou a desenvolver os sintomas da doença.
Augusto e Michaela Odone, cansados de verem seu filho submetido a testes e experimentos médicos, desenvolveram um óleo a base de oliva e colza que ajudou Lorenzo a viver 20 anos a mais do que os médicos previram (Lorenzo morreu um dia após completar 30 anos). O óleo atua interrompendo a síntese de ácidos graxos, e reduz os efeitos da degradação da bainha de mielina. O filme foi indicado a duas categorias do Oscar, incluindo melhor roteiro.

Referências

  • ALBERTS, Bruce. Biologia molecular da célula. 5. ed. Porto alegre: Artmed, 2010.
  • CARNEIRO, José; JUNQUEIRA, Luiz C.. Biologia Celular e Molecular. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
  • COOPER, Geoffrey M.; HAUSMAN, Robert E.. The Cell: A Molecular Approach. 2. ed. Sunderland: Sinauer Associates, 2000.
  • GABALDÓN, Toni. Peroxisome diversity and evolution. Philosophical Transactons Of The Royal Society, v. 365, p.765-773, 2010.
  • J.A.WANDERS, Ronald; R.WATERHAM, Hans. Biochemistry of Mammalian Peroxisomes Revisited. Annu. Rev. Biochem, v. 75, p.295-332, 2006.
  • CORPAS, Francisco J.; BARROSO, Juan B.; RÍO, Luis A. del. Peroxisomes as a source of reactive oxygen species and nitric oxide signal molecules in plant cells. Trends In Plant Science, v. 6, n. 4, p.145-150, 2001.
  • DUVE, C. de et al. The peroxissome: a new cytoplasmatic organelle. Proc. Roy. Soc. B., v. 173, p.71-83, 1969.