Câncer

Dr. Rafael Seigi Kohasigawa

Introdução

O estudo do câncer não é importante apenas pelo seu óbvio impacto na saúde, mas também porque ajuda a compreender melhor mecanismos do ciclo celular, morte celular programada, reparo de DNA, etc. Isso tudo devido ao comportamento anormal que as células cancerosas apresentam o qual foge muito ao que mantém organismos multicelulares coesos.

Nesta seção serão tratados o processo de desenvolvimento do câncer do ponto de vista celular, as alterações moleculares que provocam o surgimento de células cancerosas e como as descobertas nessa área estão sendo utilizadas para a prevenção e cura dessa doença.

Comportamento, classificação e características gerais

Pode-se comparar um organismo a uma sociedade ou a um ecossistema, mas, ao contrário do que ocorre no relacionamento entre organismos ou mesmo seres unicelulares, não é a sobrevivência o fator mais forte, e sim o sacrifício pela “comunidade”. Isso porque as células somáticas não se reproduzem (não passam adiante seu material genético a fim de perpetuá-lo), mas mantêm as células germinativas vivas para que elas possam fazer isso.

Para que haja essa cooperação, as células tem que se comunicar e fazem isso por sinais que dizem cada uma como devem se comportar para o bem do organismo (quando é necessário que se dividam, diferenciem ou morram). Mutações podem quebrar esse equilíbrio, podendo dar vantagens a células que as tornem capazes de iniciar sua própria colônia, o que prejudica as células vizinhas, já que esse aglomerado de células clonadas consome grande quantidade de nutrientes, que seriam destinados às suas vizinhas, e acaba por prejudicar o organismo. O desenvolvimento de um câncer se assemelha, portanto, a um processo evolutivo: há mutações que são selecionadas caso sejam vantajosas aos indivíduos, há competição entre esses indivíduos e os mais aptos acabam por sobrepujar os demais.

Assim, células cancerosas são definidas por dois comportamentos básicos e hereditários (os dois primeiros), além de outros que serão explicados mais adiante:

  • Reproduzem-se descontroladamente, já que não obedecem aos mecanismos de sinalização como deveriam (autossuficiência em sinais de crescimento, ignoram os sinais extracelulares que impedem divisão celular e os que causam apoptose);
  • Invadem outros tecidos, formando novas “colônias” (metástases);
  • São geneticamente instáveis, o que facilita o aparecimento de novas mutações;
  • Possuem potencial replicativo ilimitado (produzem telomerase);
  • Liberam sinais para angiogênese.

Caso apresente apenas a primeira característica é considerado um tumor benigno, sendo mais fácil de ser destruído ou removido cirurgicamente, e se apresentar ambas, é considerado maligno, desprendendo células que invadirão outros territórios por meio da corrente sangüínea ou vasos linfáticos, tornando-os mais difíceis de ser tratados.

Tumores são classificados ainda pelo seu tecido ou célula de origem, região do corpo em que se desenvolveu primeiro e sua aparência microscópica. Cânceres são divididos em carcinomas, derivados de tecido epitelial, constituindo mais de 80% dos casos em humanos; sarcomas, derivados de tecido conectivo ou muscular; leucemias e linfomas, provenientes células brancas e seus precursores; e neuroblastomas e glioblastomas, do tecido nervoso. Assim, um adenocarcinoma é um câncer que deriva de uma estrutura glandular e um adenoma é um tumor benigno de mesma origem.

Cânceres mantêm, geralmente, as características das células das quais se originaram, o que faz com que tipos diferentes tenham características muito diferentes, podendo ser mais ou menos malignos, o que muda o modo como se irá intervir na doença e os efeitos secundários que ela pode causar. Um melanoma em geral, produz grânulos de pigmento e possui grande malignidade, refletindo características de células pigmentosas da pele, já que esse tipo de célula possui comportamento migratório durante seu desenvolvimento.

Quanto aos genes, tanto proto-oncogenes (estimuladores) como supressores de tumor (inibidores) possuem seu papel no ciclo celular, logo, o mesmo tipo de efeito pode ocorrer por uma mutação em uma ou outra classe de genes críticos para o câncer já que eles podem atuar em uma mesma via de sinalização. É muito importante, então, saber em quais vias de sinalização cada um desses genes atua em condições normais e quando está acometido por um câncer.

Algumas das vias mais importantes para o desenvolvimento de um câncer são as:

  • Que recebem sinais do meio externo.
  • Responsáveis por programas internos, como controle do ciclo celular.
  • Governam movimentos celulares.
  • Responsáveis pela interação mecânica com as células vizinhas.

Modelos animais, como drosófilas e camundongos transgênicos e nocaute, são utilizados para o entendimento dessas vias e das interações entre elas. Por exemplo, em camundongos transgênicos pode-se testar o efeito de inativação das duas cópias de um gene por meio de mutações condicionais, método que foi descrito na seção sobre Replicação, reparo e recombinação de DNA, já que genes supressores de tumor são importantes no desenvolvimento embrionário, não podendo ser inativados ambos os alelos.

Células tumorais podem apresentar um componente intermediário ou final de uma via de sinalização com algum tipo de defeito. Várias das alterações que causam câncer ocorrem em vias importantes do desenvolvimento embrionário, como Hedgehog, Wnt, TGFβ e Notch, mas que ainda apresentam atividade na fase do indivíduo adulto. A seguir, serão tratadas algumas das vias importantes para o desenvolvimento de um câncer.

Origem genética e epigenética

A mutação que origina os cânceres pode ser tanto genética como epigenética, mas há evidências de que a maioria dos tumores seja originada pelo primeiro caso:

  • As células tumorais apresentam alterações genéticas que as diferenciam das demais, e essas alterações foram identificadas na maioria de diferentes tipos de cânceres, o que significa que agentes carcinogênicos tem relação com a mutagênese.
  • Mutações em taxa elevada ocorrem em pessoas que herdaram defeitos nos genes responsáveis pelo reparo de DNA (caso da doença xeroderma pigmentosa, que será tratada mais adiante).

Embora o processo de replicação seja muito eficaz, como já foi tratado na seção sobre esse assunto, falhas espontâneas ocorrem. A probabilidade é de 10-6 mutações ocorram por gene a cada divisão, mas como há 1016 divisões durante uma vida humana em média, há cerca de 1010 ocasiões independentes em que genes podem sofrer mutação.
Obviamente, não é apenas uma mutação que causa o câncer, caso contrário organismos seriam inviáveis, mas o acúmulo delas em genes críticos para a regulação do crescimento e da divisão. Duas conclusões podem ser tiradas: câncer pode ser originado a partir de uma única célula e as chances de que se desenvolva aumentam com a idade.

Quanto às mutações epigenéticas, há evidencias de que o silenciamento anormal de certos genes responsáveis pelo controle, desenvolvimento e multiplicação celular sejam tão importantes no desenvolvimento de um câncer quanto às mutações genéticas. Como já visto nas seções sobre transcrição gênica, é importante para a leitura de um gene o seu estado de compactação, que é alterado por modificações epigenéticas. Portanto, se houver modificações nas histonas ou nas proteínas que fazem a escrita ou a leitura do código das histonas, seja por mutação no gene para a síntese delas ou não, pode haver formação anormal de heterocromatina que é passada para células filhas, já que complexos ligadores de heterocromatina são mantidos estavelmente após replicação de DNA.

Divisão celular

Mutações para ganho de função podem ativar de maneira imprópria proteínas importantes para as vias de sinalização, como o receptor EGF e a proteína Ras, e mutações de perda de função geralmente afetam supressores de tumor, como é o caso dos componentes da via de Rb, responsável por impedir que o ciclo celular passe da fase S caso haja algum problema.

Figura 1

Essa inibição é feita pela ligação entre Rb e uma proteína da família E2F, que regula a transcrição de genes para proteínas requeridas para a entrada na fase S, e essa interação é desfeita por fosforilação de Rb por meio de Cdks (cinases dependentes de ciclina). Os modos que as células cancerosas burlam esse controle variam: algumas não possuem Rb ou alguns dos outros componentes da via; pode haver aumento da produção de ciclina D e Cdk4, que formam um complexo responsável pela fosforilação de Rb; defeito na produção de p16, proteína que inativa o complexo citado anteriormente em situações de estresse.

Crescimento celular

Como já foi visto na seção sobre Ciclo celular, células precisam crescer antes de se dividir, o que envolve o anabolismo de macromoléculas. A via da Akt estimula a síntese de lipídeos (aumento da produção de acetil-CoA no citosol e ativação de ACL) e proteínas, e absorção de glicose (ativação de mTOR) e a ativação anormal dessa via ocorre em cânceres normalmente pela perda da fosfatase PTEN, responsável por desfosforilar as moléculas fosforiladas por PI 3-cinase, como o segundo mensageiro PI(4,5)P2, que ativa a Akt. O resultado das mutações é que a via da Akt é estimulada com a ausência de sinais, o que incita o crescimento célular. A ativação excessiva da via explica o efeito de Warburg, que é o aumento da taxa de glicólise pelas células tumorais, e que pode ser observado por modernas técnicas de imagem de corpo inteiro.

 Geneticamente instáveis

É geneticamente instável uma célula que apresente uma taxa muito alta de acumulo de mutações, o que é causado por alterações em mecanismos de manutenção dos genes. Isso pode ser expresso de várias formas, como:

  • Incapacidade de reparar certos tipos de danos ao DNA ou erros de replicação, o que causa maior acumulo de mutações pontuais ou em sequência;
  • Defeito na manutenção da integridade de cromossomos;
  • Alterações epigenéticas que desestabilizem padrões de herança celular, etc.

Em geral, mutações que causam desestabilização não são herdadas, mas as pessoas que as recebem apresentam maior incidência de câncer, o que comprova sua importância no desenvolvimento da doença. O que acontece normalmente é a alteração aparecer de novo conforme o tumor progride.

Entretanto, a instabilidade não garante o desenvolvimento de um câncer, é necessário que mecanismos para a sobrevivência da célula sejam preservados, mas também deve ser instável o suficiente para acumular mutações para que o tumor se desenvolva mais rapidamente. Logo, a instabilidade por si só não fornece vantagem seletiva.

 Fuga de apoptose

Células normais param de se dividir quando danos são causados ao seu material genético, como visto na seção sobre o Ciclo celular, por causa de um mecanismo de controle de pontos de verificação. O mecanismo é ativado quando sinais intracelulares são gerados pela quebra de DNA ou outros tipos de danos, o que permite o reparo da lesão. Se ela não for reparável, a célula sofre apoptose.

Em geral, células cancerosas perderam esses mecanismos por mutações ou alterações epigenéticas. Isso constitui uma dupla vantagem para essas células: elas podem continuar sua proliferação mesmo com o material genético lesado, pulando etapas do ciclo celular, e tem a taxa de acumulo de mutações aumentada.

Um dos genes que tornam a célula cancerosa resistente quando estão mutados é o Bcl2, que inibe a apoptose em condições normais ao impedir a saída da mitocôndria para o citosol de proteínas formadoras do apoptossomo por inibição de proteínas Bax (Bh123), como foi discutido na seção sobre Apoptose. Esse gene pode se apresentar hiperativo quando for translocado e colocado sob uma sequência reguladora de DNA, permitindo a sobrevivência da célula.

Figura 2

Um gene que talvez seja o mais importante na prevenção do câncer humano e cujo produto atua em várias vias, inclusive inibindo a ação do Bcl2, é o p53, gene que apresenta-se mutado em cerca de. A proteína é essencial para:

  • Promoção de apoptose: a p53 pode estimular a expressão de genes pró-apoptóticos ou inativar a Bcl2, promovendo a apoptose dessa forma.
  • Respostas a problemas no ciclo celular: a proteína age como reguladora de genes por meio da ligação com o DNA e indução da transcrição de p21, gene cuja proteína inibe o complexo Cdk necessário para que o ciclo continue, prevenindo a célula de entrar na fase S.
  • Respostas a estresses, como hipóxia.
  • Indução de senescência celular replicativa quando os telômeros de um cromossomo ficam muito curtos.

O vídeo a seguir explica a função da p53 no ciclo celular:

 Vírus de DNA

Vírus de DNA que causam tumores tem genes que inibem proteínas reguladoras importantes do ciclo celular e apoptose. Como já vimos antes, vírus podem se replicar de duas formas: pelo ciclo lítico (fase replicativa) ou pelo ciclo lisogênico (fase de latência). Quando genes para proteínas utilizadas no ciclo lítico, cuja função é permitir a replicação do material genético viral de forma independente do DNA da célula hospedeira, são acidentalmente ativadas no ciclo lisogênico, pode ocorrer o desenvolvimento de um câncer.

Um bom exemplo é o papilomavírus, cujos genes virais responsáveis por interferir no ciclo celular da hospedeira são E6 e E7. Esses genes inibem a ação de duas proteínas importantes para a regulação do ciclo celular e apoptose, que também interferem na replicação do DNA viral: Rb e p53. Outros vírus de DNA tumorais também apresentam mecanismos que inibem essas proteínas, o que mostra como elas são importantes para a prevenção do desenvolvimento de um câncer.

 Potencial replicativo ilimitado

Senescência celular replicativa é um fenômeno que ocorre com a maioria dos tipos celulares humanos e trata-se da perda permanente da capacidade de uma célula se dividir após ela ter passado por certo número de ciclos celulares. Isso é sinalizado pelo encurtamento progressivo dos telômeros (segmentos terminais dos cromossomos) ao longo dos ciclos, já que a replicação deles depende de telomerase, enzima em pouca quantidade em células proliferativas, exceto em células-tronco.

Esse processo é natural e organiza o limite fisiológico da proliferação celular. Células cancerosas evitam esse fenômeno de duas maneiras:

  • Por meio de alterações genéticas ou epigenéticas que façam os mecanismos dos pontos de verificação parar de funcionar, como mutações na via da p53;
  • Manter atividade telomerásica durante a proliferação.

 Células-tronco cancerosas

Há evidências de que as células cancerosas também se organizam de forma hierárquica assim como linhagens normais. Há um pequeno número de células-tronco que se dividem mais lentamente e dão origem a novas células do mesmo tipo (renovação intrínseca) e a outras com capacidade para se dividir mais rapidamente (células amplificadoras transitórias) e são responsáveis por manter o número de células diferenciadas. Assim, a maioria das células de um câncer não é capaz de gerar um novo tumor se forem extraídas e transplantadas para um meio de cultura.

Podem ser duas as origens de células-tronco cancerosas:

  • A partir de células-tronco normais que acumularam mutações e mudanças epigenéticas suficientes para gerar uma célula cancerosa, o que aparentemente é a maneira mais comum de um câncer surgir;
  • Mudanças que confiram a células proliferativas mais diferenciadas características essenciais de células-tronco (habilidade de ser retida no corpo e renovação intrínseca).

As terapias atuais visam atingir células que se multiplicam rapidamente e células-tronco não fazem isso normalmente, o que talvez explique o ressurgimento de tumores.

Figura 3

 Metástases

O processo de formação de metástases é o que torna o câncer tão temido, pois assim que o tumor as forma é quase impossível de ser erradicado por meios menos complicados, como a cirurgia ou a irradiação localizada. Contudo, não está muito claro que mecanismos moleculares nem que propriedades uma célula tumoral tem de desenvolver para adquirir habilidade de invadir o tecido subjacente e formar metástases. E diferentes tipos celulares apresentam diferentes problemas, como epitélios e células sanguíneas que apresentam grau bem diferente de adesão ao tecido ao qual pertencem.

O desenvolvimento de metástases é um processo que possui várias etapas que podem ser definidas por:

  • Desprendimento do tumor primário e invasão do tecido local: células normais possuem meios para continuar aderidas ao seu tecido e não invadir os que sejam adjacentes, e, embora a invasibilidade ainda não seja algo bem entendida molecularmente, ela certamente requer que mecanismos que mantêm a célula aderida às outras e à matriz extracelular sejam rompidos. Um exemplo disso são mudanças na expressão do gene da caderina-E, responsável pela adesão entre células epiteliais por meio de junções aderentes e que é defectivo em alguns tipos de carcinomas.
  • Fuga do tecido, movimentação pela circulação e invasão de órgão distante: a célula deve cruzar a lâmina basal, atravessar o endotélio de vasos sanguíneos ou linfáticos de forma a atingir a circulação. Isso é ajudado grande secreção de fatores angiogênicos, como o VEGF, pelas células tumorais. O fato dos vasos serem frágeis também facilita o extravasamento de células. Por fim a célula deve novamente ultrapassar essas mesmas barreiras para atingir um órgão.
  • Formação de uma colônia: apesar de muitas células conseguirem escapar do tumor primário, poucas células são capazes de formar uma colônia. Acredita-se que isso aconteça porque é necessário que elas sejam células-tronco cancerosas, caso contrário as células não desenvolverão um novo tumor. Essas células devem também possuir certa independência de sinais extracelulares específicos para o tipo celular e resistência a apoptose, pois células normais entram em morte celular quando não recebem eles, que inclusive não existem em um tecido que não seja o de sua origem.

Figura 4

 Indução de angiogênese

Como todos os tecidos, tumores também liberam sinais para angiogênese em resposta à hipóxia, o que acontece quando ele ultrapassa 1 ou 2 mm de diâmetro. O aumento do suprimento de sangue se dá pelo aumento do nível de fator induzível de hipóxia, um gene de uma proteína que ativa fatores pró-angiogênicos, como o fator de crescimento vascular endotelial (VEGF). Estas proteínas atraem células endoteliais e novos vasos são formados.

Entretanto, a produção desses fatores não é homogênea, o que resulta em vasos de calibres diferentes e frágeis, isso traz benefícios para as células cancerosas, mas também para o tratamento contra o câncer. Os vasos defeituosos resultam em uma irrigação não homogênea, logo, novas zonas de hipóxia são formadas, o que seleciona as células cancerosas mais resistentes. Ao mesmo tempo eles podem ser alvo lógico para a quimioterapia, já que o crescimento tumoral depende do aporte de nutrientes.

 Participação do estroma

Células do estroma, que é o tecido conjuntivo de suporte de um tumor (fibroblastos, leucócitos inflamatórios, células endoteliais de vasos sanguíneos e linfáticos e células musculares lisas), não são cancerosas, mas possuem sua participação no desenvolvimento do tumor. Essas células secretam proteínas sinal que estimulam o crescimento e a divisão celular das células cancerosas e proteases que remodelam a matriz extracelular. Por exemplo, o desenvolvimento de câncer de pele em camundongos é retardado se um tipo de proteínase secretado por mastócitos do estroma não for produzido corretamente. Essa proteinase é responsável pela liberação de fatores angiogênicos pela matriz extracelular, que são necessários para o crescimento do tumor.

 Agentes externos causadores de câncer

Percebe-se a importância de fatores ambientais para o desenvolvimento de um câncer quando se compara populações de diversos países e com costumes distintos. Essa diferença não parece ser tanto genética, pois populações imigrantes possuem a incidência dos mesmos tipos de câncer do país em que estão.

Entretanto, os principais fatores de risco específicos para o desenvolvimento de um câncer são difíceis de identificar, assim como o modo como eles agem, já que a evolução dessa doença leva em conta múltiplos fatores. A seguir, serão tratados os que já foram identificados e o que se sabe sobre eles.

 Carcinogênicos: iniciadores e promotores de tumor

Carcinogênicos, que podem ser substâncias químicas, microrganismos ou radiação, são muitos e funcionam de maneiras distintas, podendo ser ou não mutagênicos, embora o primeiro caso seja mais fácil de entender e também seja mais estudado. Eles podem ser divididos em dois tipos: os iniciadores e os promotores de tumor.

Os iniciadores são substâncias que causam dano ao DNA, mas, em geral, uma única exposição não produz um tumor, mas sim um dano latente. Ele pode evoluir para um câncer se houver alguma lesão posteriormente, seja por novas aplicações do iniciador ou qualquer outra agressão, como uma ferida ou aplicação de outros carcinógenos.

Já os promotores de tumor não são capazes de lesionar o DNA, podendo causar câncer apenas se as células tiverem sido expostas a um iniciador previamente. Os promotores mais estudados são os ésteres de forbol, ativadores artificiais da proteína-cinase C (PKC).

Não se sabe ao certo como os promotores atuam no desenvolvimento de um tumor, já que eles o fazem de maneiras distintas, mas as hipóteses mais plausíveis são:

  • Induzir uma resposta inflamatória, causando a secreção de fatores de crescimento e de proteases, ambos podem ser estimulantes da divisão celular.
  • Provocar a expressão de genes de proliferação que foram mutados pelos iniciadores.
  • Alterar a maneira como a célula reagirá ao produto do gene mutado, tanto pela inibição de mecanismos que impeçam a ação desse produto quanto pela produção de um cofator necessário para que ele possa agir.
  • Expandindo a população de células que contêm a mutação.

 Importância de uma abordagem epidemiológica

Pode-se não saber ao certo como funciona a maioria dos mecanismos carcinogênicos, mas a relação entre algumas substâncias e microrganismos com a geração de um câncer é bem patente em alguns casos. O que se pode fazer, então, é evitá-los já que isso é muito mais simples do que o tratamento de um câncer.

Fora o tabagismo, o que se tem apontado no estilo de vida moderno e que seria maléfico à saúde, como a poluição e alimentação, são só causas prováveis de câncer, mas que carecem de estudos mais aprofundados.

 Genes críticos para o câncer

Agora serão tratados os tipos de genes necessários para o desenvolvimento de uma câncer, assim como as técnicas para identificá-los e os vários tipos de alterações herdadas durante o desenvolvimento da doença.

 Mutações de ganho ou perda

Há dois grupos de gene críticos para desenvolvimento de um câncer: os proto-oncogenes, em que o ganho de função estimula a célula a se dividir quando não deveria, e os genes supressores de tumor, já que a função deles é controlar o crescimento celular e se perdem sua função facilitam o desenvolvimento de um câncer. Há ainda uma terceira classe: genes de manutenção do DNA, que possuem efeito indireto no desenvolvimento de um câncer pois mutações que ocorram neles podem gerar instabilidade genômica.

Portanto, o ganho de função dos primeiros ou a perda em genes da segunda classe produz um efeito semelhante na proliferação e sobrevivência da célula, contudo incidência de tumor causada por uma mutação em um tipo ou outro varia. Se houver alteração em apenas um alelo de um gene da primeira classe haverá aumento do crescimento celular (efeito dominante), mas serão necessárias duas para que aconteça o mesmo com os da segunda classe (efeito recessivo). Graças a essa diferença os métodos para a identificação de alteração em uma ou outra classe também são distintos.

A hiperatividade dos oncogenes e a inibição dos supressores de tumor pode se dar por:

  • Mutação pontual ou deleção na sequência codificadora ou na reguladora do gene.
  • Amplificação gênica (no caso dos proto-oncogenes, a existência de várias cópias aumenta o efeito deles, propiciando a formação de um tumor).
  • Recombinação mitótica (quebra e rejunte das hélices de DNA, pode resultar em uma proteína hiperativa – caso da leucemia mieloide crônica, causada inicialmente pelo produto do cromossomo Filadélfia, que promove a proliferação – ou inativar um supressor de tumor).
  • Não-disjunção de um cromossomo (o que pode causar a perda de um alelo funcional de um gene supressor de tumor).
  • Alterações epigenéticas (metilação de C numa sequência CpG pode inibir permanentemente o promotor de um supressor).

 Técnicas

O estudo de retrovírus causadores de câncer, embora eles não sejam responsáveis por muitos dos principais tipos em humanos, e sim em outros animais, ajuda a elucidar como as causas genéticas do câncer na nossa espécie atuam.

Um exemplo é o vírus de sarcoma de Rous em galinhas, que é um retrovírus. Assim que infecta a célula, ele produz uma cópia de seu material genético em DNA, assim como outros retrovírus, que é inserida no DNA da célula hospedeira. O DNA viral apresenta um oncogene (v-Src) que provavelmente foi assimilado pelo vírus a partir de outro animal, já que não é essencial para sua replicação e sequências semelhantes (c-Src) foram detectadas em vertebrados. A descoberta comprovou a existência de proto-oncogenes e estimulou a pesquisa com retrovírus causadores de câncer.

Outro método é a inserção de material genético de células cancerosas para se identificar se determinadas sequências são oncogênicas em células cancerosas humanas, cientistas tem inserido-as em células de camundongos que já tem uma tendência a proliferar indefinidamente em cultivo e observado se isso causa multiplicação sem controle, o que poderia ser causado por apenas um único oncogene.

Para que ele seja detectado, o DNA de células cancerosas é fragmentado e introduzido nos fibroblastos dos camundongos em cultivo, e onde houver proliferação anormal, um oncogene foi inserido.

Por meio dessa técnica o proto-oncogene Ras foi descoberto, que está mutado em cerca de 20% dos cânceres humanos. Como já foi discutido na seção sobre Mecanismos de comunicação celular, as proteínas Ras atuam como centro de sinalização, pois várias vias de sinalização confluem para elas. A mutação causa uma hiperatividade dessas GTPases, que continuam a estar ativas mesmo com a hidrólise do GTP, aumentando o efeito de várias vias de sinalização, como ativação da proteína mTOR, que estimula crescimento celular.

Outro modo é o estudo de síndromes hereditárias raras para a identificação de um gene supressor de tumor, já que isso requer uma estratégia diferente da usada para identificar um proto-oncogene, pois houve uma perda de função do gene ao invés de hiperatividade. Estudos em tipos raros de câncer, como o retinoblastoma, derivado de células da retina após poucas mutações, podem ajudar a identificar supressores de tumor.

Nessa doença, há a deleção clara de uma banda específica do cromossomo 13, chamada de gene Rb, tanto em crianças que adquiriram hereditariamente quanto em células de tumores desenvolvidos de forma não hereditária. Em pessoas com a forma hereditária, uma das cópias do gene já se encontra inativa ou mutada em todas as células somáticas, tornando-as predispostas a tornarem-se cancerosas. Isso explica a raridade da forma não hereditária, pois as duas cópias do gene Rb devem ser inativadas na mesma célula para que ela se torne cancerosa.

Por meio de estudos posteriores, descobriu-se que o gene Rb tem importância em outros tipos de câncer bastante comuns, como carcinomas de mama, bexiga e pulmão, embora outras mutações sejam necessárias para essas células se tornarem cancerosas.

A importância do gene Rb para a célula se deve a seu papel como regulador do ciclo celular na passagem de G1 para S, sendo um dos principais interruptores da divisão celular. A sua perda acarreta obviamente na progressão de erros ao longo de inúmeras divisões.

O método anterior não abarca muitos tipos dos principais cânceres, pode-se então usar uma abordagem mais direta que é comparar o material genético da célula cancerígena com o genoma humano, mapeado pelo Projeto Genoma, ou de células saudáveis da própria pessoa. Embora mais trabalhoso, pode-se contar com ferramentas modernas para se executar esse método e verificar sequências que estejam faltando.

 Tratamento do câncer

Os melhores tratamentos contra o câncer exploram características peculiares das células cancerosas, como a perda da resposta dos pontos de verificação do ciclo celular, defeitos nos mecanismos de reparo do DNA e na via de controle de apoptose, além da dependência de proteínas oncogênicas. As terapias anticâncer que se utilizam desses mecanismos serão brevemente tratadas agora.

Radiação e a maioria dos fármacos anticâncer lesiona severamente o DNA, e como as células cancerosas não apresentam vários dos pontos de verificação, elas continuam a se dividir e morrem devido às lesões. Entretanto, algumas dessas mortes ocorrem por apoptose em células normais em resposta aos danos causados ao DNA, que é um mecanismo defeituoso em muitas células cancerosas. Fármacos e radiação em geral ativam a p53, que regula a via apoptótica, mas o gene para ela está mutado em muitos tipos de cânceres e o tratamento não se torna tão efetivo.

Outra característica que está sendo explorada por cientistas é a instabilidade genética. Como vimos antes, ela ocorre porque mecanismos para o reparo de DNA foram mutados ou inativados epigeneticamente, no entanto, há várias vias para o reparo e muitas delas consertam o mesmo tipo de dano (como já foi discutido na seção sobre Replicação, reparo e recombinação de DNA), logo, se um fármaco inativar algumas delas o efeito será maior em células cancerosas, já que elas devem apresentar poucas vias que funcionem.

Esse método já é utilizado para matar células cancerosas com deficiência em Brca1 e Brca2, genes envolvidos no reparo de DNA. Para tratar essas células, usa-se um inibidor de poli-ADP-ribose-polimerase (PARP), proteína envolvida no mesmo tipo de reparo de DNA que genes citados anteriormente realizam. O fármaco não afeta células saudáveis, mas é letal para as células cancerosas, o que mostra como o tratamento altamente seletivo pode ser eficaz.

Contudo, a instabilidade genética também pode dificultar o tratamento do câncer, pois a elevada taxa de mutações tende a tornar a população de células cancerosas muito heterogênea, o que obriga a se usar mais de um tipo de tratamento para se curar a doença.

Outro problema é a resistência múltipla a fármaco, que uma célula cancerosa desenvolve quando exposta a um tipo de medicamento e que por causa disso também desenvolve contra outros tipos a que nunca foi exposta. Acredita-se que isso se deve a ATPase de transporte ABC codificada pelo gene Mdr1, que pode ser amplificado em células cancerosas. A grande quantidade dessas proteínas expulsa o excesso de fármacos citotóxicos, o que torna a célula insensível a eles.

Sabe-se também que células cancerosas produzem proteínas que células normais não sintetizam, como o receptor Her2, semelhante ao presente em grande quantidade nas células de cerca de 25% dos cânceres de mama e que é essencial para a sobrevivência e proliferação delas. Esse tipo de fenômeno é chamado de adição oncogênica e se pode utilizar anticorpos contra essas proteínas, estratégia que é cara para a produção em larga escala, mas muito direcionada e eficaz para matar células cancerosas.

Uma alternativa é a pesquisa e teste de pequenas moléculas que sejam inibidoras das proteínas oncogênicas essenciais, o que já foi feito contra a leucemia mieloide crônica, por exemplo. A doença está associada em geral com a translocação de um cromossomo conhecido como Filadélfia, que tem como produto a proteína Bcr-Abl. O gene Abl que era responsável por produzir uma tirosina-cinase, tem seu produto hiperativo quando sua porção N-terminal é substituída pelo Bcr, o que resulta em proliferação excessiva e prevenção contra apoptose, logo, acúmulo de células sanguíneas na circulação. O bloqueador para a proteína oncogênica, Gleevec, mostrou grande eficácia no tratamento, pois cerca de 80% dos pacientes em estágios iniciais da doença deixaram de apresentar células que contivessem o cromossomo Filadélfia.